Faz, hoje, dez anos que a Maria morreu. É impossível esquecer. O que mais a marcava era o seu sorriso, tão puro, doce, tão alegre. A Maria tinha uma energia inesgotável, tinha apenas dois anos a mais que eu e era a minha melhor amiga.
Quando dormíamos na casa duma da outra, passávamos as noites a fazer planos. A nossa vida estava mais que organizada. Seríamos grandes pediatras, casaríamos com dois irmãos ingleses e moraríamos, todos juntos, numa fabulosa quinta. Teríamos quatro filhos e seríamos muito felizes. Nessas noites prometíamos ser as melhores amigas do mundo. E essa, essa foi a única promessa cumprida.
Eu sempre a invejei. Ela era bonita, das melhores alunas da escola e tinha todos os rapazes atrás dela. Os pais da Maria tinham ido para a Suiça pouco antes dela atingir a maioridade. Até nisso ela tinha sorte. A Maria era considerada perfeita. E, embora fosse a minha melhor amiga, detestava quando os meus pais me comparavam com ela.
Depressa a Maria se tornou maior de idade e como prenda tivera uma casa em Leiria.
Dois dias depois a tia Betty tinha falecido. Os meus pais foram a Itália, ao funeral, e depois acabaram por passar lá uns tempos, assim foi porque a Maria convidou-me para ir morar com ela. Eu adorei. Pela primeira vez achara os meus pais os melhores do mundo. Mas graças à Maria, claro.
Passou-se um ano. Eu estava completamente dependente da Maria e, no fundo, ela de mim. O sorriso da Maria era contagiante. Em tantos anos de convivência com a Maria nunca a tinha visto chorar, mas, nestes últimos meses, ela andava mal, algo a preocupava, e eu sabia. Mas, nunca falámos muito sobre isso. As poucas vezes que tocávamos no assunto ela desviava sempre o olhar e começara a falar noutra coisa e eu não insistia, nunca percebi o porquê, mas eu também andava muito cansada e triste porque o Guilherme não me ligava nenhuma.
Lembro-me tão bem. Foi numa quinta-feira de manhã. A Maria acordou primeiro que eu e disse-me: "preciso falar contigo. Por favor, ouve-me..." disse isso com um tom melancólico, deprimido e completamente desesperado. E eu dormia, ou fingia que dormia para não ter que acordar às 8h da manhã, num domingo de chuva.
Ela veio ter comigo e deu-me um beijo na testa. Olhou-me e deixou cair uma lágrima que me tocou no rosto.
Saiu, deixando a porta entreaberta.
Acordei eram 11h13 minutos. Senti a ausência da Maria. Espreguicei-me. Permaneci deitada ainda uns bons quinze minutos. Chamei pela Maria, mas nada. Levantei-me.
Percorri a casa, a pequena e airosa casa e a Maria não estava. Voltei ao quarto: uma carta. De repente ocorreu-me mil e uma imagens, das mais desagradáveis que pudessem haver. Tive medo, tive muito medo de a abrir. Lentamente desdobrei a carta, que dizia assim:
« Um dia, quando acordamos e nos apercebemos que há muito que não sonhamos, então aí, já não faz mais sentido viver.
Querida Marta,
Nunca fui feliz como sempre quis demonstrar que o era; sempre sorri para não ter que chorar. Mas hoje, ao querer falar contigo e tu continuares nesse sono profundo, senti-me tão só que nem imaginas. Chorei muito, muito mesmo, mas tu dormias, não ouviste.
Bolas, estou farta de sofrer escondida, sozinha, de sofrer neste cubículo só meu, de sofrer e de ninguém entender. FARTA!
Chama-me doida, doente, o que quiseres mas eu estou mesmo farta disto tudo. Com ou sem motivos, assim termino este meu sofrimento.
Um beijo e um até sempre,
Desta tua sempre – fracassada – amiga.
Desculpa-me... »
A carta estava cheia de erros e a letra estava quase ilegível.
A Maria tinha-se suicidado. Naquele momento parecera que eu morrera também.
Incrivelmente não chorei. Apenas, uma incontrolável dor ia-me destruindo por dentro. E a culpa era minha.
Os pais da Maria , que sempre demonstraram pouco afecto e dedicação por ela – que eu na altura sempre julgara isso como sendo das melhores coisas que pudessem acontecer – puseram-me um "processo em cima": dizendo que eu era a culpada do sucedido. Claro que o tribunal não me atribuiu qualquer tipo de pena. Mas, se eu perante a lei nada de mal tinha feito perante os meus sentimentos eu era a pior das criminosas.
Eu tinha 17 anos, e por só pensar em dormir tinha perdido para sempre a Maria.
Hoje, passados dez anos – a Maria teria 29 anos – tenho uma filha linda, uma filha que se chama, também, Maria. A minha filha é tão ou mais bonita que a minha eterna amiga e têm as duas o mesmo sorriso. Podem ser muito parecidas mas vão ter destinos muito diferentes.
Para ti, minha amiga Maria,
gosto e vou gostar sempre muito de ti
e hoje sou eu que digo: desculpa-me...
Quando dormíamos na casa duma da outra, passávamos as noites a fazer planos. A nossa vida estava mais que organizada. Seríamos grandes pediatras, casaríamos com dois irmãos ingleses e moraríamos, todos juntos, numa fabulosa quinta. Teríamos quatro filhos e seríamos muito felizes. Nessas noites prometíamos ser as melhores amigas do mundo. E essa, essa foi a única promessa cumprida.
Eu sempre a invejei. Ela era bonita, das melhores alunas da escola e tinha todos os rapazes atrás dela. Os pais da Maria tinham ido para a Suiça pouco antes dela atingir a maioridade. Até nisso ela tinha sorte. A Maria era considerada perfeita. E, embora fosse a minha melhor amiga, detestava quando os meus pais me comparavam com ela.
Depressa a Maria se tornou maior de idade e como prenda tivera uma casa em Leiria.
Dois dias depois a tia Betty tinha falecido. Os meus pais foram a Itália, ao funeral, e depois acabaram por passar lá uns tempos, assim foi porque a Maria convidou-me para ir morar com ela. Eu adorei. Pela primeira vez achara os meus pais os melhores do mundo. Mas graças à Maria, claro.
Passou-se um ano. Eu estava completamente dependente da Maria e, no fundo, ela de mim. O sorriso da Maria era contagiante. Em tantos anos de convivência com a Maria nunca a tinha visto chorar, mas, nestes últimos meses, ela andava mal, algo a preocupava, e eu sabia. Mas, nunca falámos muito sobre isso. As poucas vezes que tocávamos no assunto ela desviava sempre o olhar e começara a falar noutra coisa e eu não insistia, nunca percebi o porquê, mas eu também andava muito cansada e triste porque o Guilherme não me ligava nenhuma.
Lembro-me tão bem. Foi numa quinta-feira de manhã. A Maria acordou primeiro que eu e disse-me: "preciso falar contigo. Por favor, ouve-me..." disse isso com um tom melancólico, deprimido e completamente desesperado. E eu dormia, ou fingia que dormia para não ter que acordar às 8h da manhã, num domingo de chuva.
Ela veio ter comigo e deu-me um beijo na testa. Olhou-me e deixou cair uma lágrima que me tocou no rosto.
Saiu, deixando a porta entreaberta.
Acordei eram 11h13 minutos. Senti a ausência da Maria. Espreguicei-me. Permaneci deitada ainda uns bons quinze minutos. Chamei pela Maria, mas nada. Levantei-me.
Percorri a casa, a pequena e airosa casa e a Maria não estava. Voltei ao quarto: uma carta. De repente ocorreu-me mil e uma imagens, das mais desagradáveis que pudessem haver. Tive medo, tive muito medo de a abrir. Lentamente desdobrei a carta, que dizia assim:
« Um dia, quando acordamos e nos apercebemos que há muito que não sonhamos, então aí, já não faz mais sentido viver.
Querida Marta,
Nunca fui feliz como sempre quis demonstrar que o era; sempre sorri para não ter que chorar. Mas hoje, ao querer falar contigo e tu continuares nesse sono profundo, senti-me tão só que nem imaginas. Chorei muito, muito mesmo, mas tu dormias, não ouviste.
Bolas, estou farta de sofrer escondida, sozinha, de sofrer neste cubículo só meu, de sofrer e de ninguém entender. FARTA!
Chama-me doida, doente, o que quiseres mas eu estou mesmo farta disto tudo. Com ou sem motivos, assim termino este meu sofrimento.
Um beijo e um até sempre,
Desta tua sempre – fracassada – amiga.
Desculpa-me... »
A carta estava cheia de erros e a letra estava quase ilegível.
A Maria tinha-se suicidado. Naquele momento parecera que eu morrera também.
Incrivelmente não chorei. Apenas, uma incontrolável dor ia-me destruindo por dentro. E a culpa era minha.
Os pais da Maria , que sempre demonstraram pouco afecto e dedicação por ela – que eu na altura sempre julgara isso como sendo das melhores coisas que pudessem acontecer – puseram-me um "processo em cima": dizendo que eu era a culpada do sucedido. Claro que o tribunal não me atribuiu qualquer tipo de pena. Mas, se eu perante a lei nada de mal tinha feito perante os meus sentimentos eu era a pior das criminosas.
Eu tinha 17 anos, e por só pensar em dormir tinha perdido para sempre a Maria.
Hoje, passados dez anos – a Maria teria 29 anos – tenho uma filha linda, uma filha que se chama, também, Maria. A minha filha é tão ou mais bonita que a minha eterna amiga e têm as duas o mesmo sorriso. Podem ser muito parecidas mas vão ter destinos muito diferentes.
Para ti, minha amiga Maria,
gosto e vou gostar sempre muito de ti
e hoje sou eu que digo: desculpa-me...
Escrito a 15 de Fevereiro, Terça-feira, de 2005
Feliz Páscoa.
ResponderEliminarUm abraço.
Já tinha lido este texto antes. E tal como achei na altura, acho-o também agora, a culpa não foi tua, nunca o poderia ser. Cada um escolhe o seu caminho.
ResponderEliminarUm beijinho grande!
Há escolhas que não nos pertencem. Eu não gosto de pensar na inevitabilidade das coisas ou na sua fatalidade, mas há escolhas trágicas. E quando alguém faz uma escolha essa decisão pertenceu-lhe. Ninguém é responsável.
ResponderEliminarO Amor e o Perdão estão para além do mundo físico, estão no mundo das coisas eternas.
Beijinho
Desejo-te uma boa semana.
ResponderEliminarBeijinhos embrulhados em abraços
Gosto das frases, das palavras, da harmonia violenta do texto em geral, mas, especialmente, gosto da dor pintada com várias cores que ele expressa.
ResponderEliminarÉ uma culpa sem sentido, a que o texto carrega. Mas admirável obra de arte, pejada de um autêntico arco-íris de sentimentos!
Bonito. Forte. Triste. Muito triste...
ResponderEliminarUmas das verdades dificeis de aceitar como ser humano é que todas as nossos acções e decisões afectam as pessoas á nossa volta e nem sempre da forma que intencionamos.
ResponderEliminarAprendi a combater o peso da responsabilidade a fazer um check ás minhas intenções e fazer o meu melhor... mais que meio mundo também teria continuado a dormir e a verdade é que se a Marta soubesse as intenções de Maria, a reacção teria sido outra.
È sem dúvida uma das histórias mais tristes que já li... p
este texto comeveu-me mt...
ResponderEliminarn vivas com esse peso de culpa na tua consciencia...nao foi o teu "sono" que catapultou essa situação de certeza...
digo isto pq...tenho 17 anos feitos a pouco mais de dois meses...em dezembro de 2006 tentei me matar...tomei comprimidos...muitos...é um milagre eu estar viva...
nem consigo descrever o q nos leva a cometer tal acto...parece q n temos coração...quer dizer parece q temos mas doi, doi tanto...parece q nem somos nos...parece q algm esta dentro de nos...enquanto fui engolindo os comprimidos era essa a sensação...
bem...se eu tivesse morrido nem quero saber como estariam os meus pais agora...talvez morresem de desgosto...nao sei...so sei q agora quando penso q quero morrer, penso tambem q nao posso ser egoista, tenho de pensar na minha familia e amigos...
quanto aos pais dela te considerarem culpada acho q se deve considerar ao facto de eles saberem q nunca estiveram lá para ela...assim subconscientemente puseram as culpas noutra pessoa...para nao sofrerem tanto...
se de algma forma puder contribuir para te ajudar o meu mail é ugly_and_fat@sapo.pt...
kisses***be happy
convite: www.noivas-arte.blogspot.com
ResponderEliminarEncontraremo-nos todos um dia!
ResponderEliminarBeijinhos
mando-te um grande beijo nortenho e o desejo de um óptimo fds
ResponderEliminar"...Nunca fui feliz como sempre quis demonstrar que o era; sempre sorri para não ter que chorar. Mas hoje, ao querer falar contigo e tu continuares nesse sono profundo, senti-me tão só que nem imaginas. Chorei muito, muito mesmo, mas tu dormias, não ouviste.
ResponderEliminarBolas, estou farta de sofrer escondida, sozinha, de sofrer neste cubículo só meu, de sofrer e de ninguém entender. FARTA!..."
... estas palavras poderiam ser minhas...mas a força que me move, aquilo que ainda quero partilhar com o Mundo, faz-me permanecer VIVA.
Deixo-te um abraço carinhoso e talvez nos vejamos por aí um dia...
Tao intenso... bj
ResponderEliminar... foi este o texto que da primeira vez que o li me deixou sinceramente impressionado (!)
ResponderEliminartão real e tão natural, tão espontâneo e tão sentido, que fiquei deveras preocupado e a pensar que ao pé dele a literatura mais profunda parece não passar de mera ficção ...
concerteza que uma amizade assim ultrapassa todas as barreiras de espaço e tempo !
"Até sempre, Maria " (!)
beijinho para ti e para a Maria :)**
Hoje cheguei aqui ...
ResponderEliminare parece-me que por aqui vou ficar!
Sabe, acredito piadosamente que existe um karma individual ...
poderá em alguns casos ser colectivo ... (viver em portugal com este governo é karma colectivo, não tenho duvidas de tal)
todavia, do magnifico texto que escreveu ... (magnifico, porque as histórias reais conseguem cativar mais facilmente) nada mais posso dizer ... porque já disse td. A Maria ... acredito que nao estará muito longe, pois fazemos tds nos parte de um plano que nao podemos compreender ...
Beijinhos cheios de energia postiva
Ana
Vivemos num mundo de cor e Luz…
ResponderEliminarAs Cores da vida nem sempre são as mais vivas nem as mais atractivas…
Mas continuamos a caminhada!
Maria agora é imortal na memória daqueles que a guardam no coração.
…Encontrei o texto por acaso…É um texto com muita energia!
Felicidades.
Forte,Profundo,Triste!
ResponderEliminarUm beijo
Olá Madalena,
ResponderEliminaro que escreves é muito triste, mas não te deves sentir culpada, tu nada podias fazer se a Maria não estava bem com ela própria. Infelizmente tenho um caso de suicidio com um familiar muito próximo e sei bem o que é sentir remorsos e culpa pela morte de alguém... mas passados 7 anos eu pouco poderia ter feito para o evitar...
A vida é injusta e a gente no nosso corre-corre constante nem sempre se apercebe de que as coisas nem sempre estão bem com aqueles que nos estão mais próximos!
bjhs e bon resto de semana
Olá Madalena
ResponderEliminarque história tão comovente!!!
E, como eu entendo a acção da Maria, quantas e quantas vezes já esperei e pedi companhia, ajuda nos momentos de maior fragilidade e solidão e, todas as pessoas dormiam e não me acudiam...
O mar sempre de fundo...
o mar que traz paz...
MAR
...MAR
CONVIDO-TE PARA VERES POESIA SOBRE O MAR e, algumas fotos que captei em Março, de férias pelo sul de Portugal.
Bom fim de semana.
Beijitos.
meus queridos, o texto é pura 'ficção'. ;)
ResponderEliminargraças a Deus, nunca passei por uma situação do género :)
um beijo, a todos &)*
O texto pode ser pura ficção, mas é algo que infelizmente acontece. Ainda bem que não foi contigo que a história se passou, pois perder alguém que nos é muito próximo é mesmo deveras devastante.
ResponderEliminarBom Domingo.
Eu não tenho palavras....
ResponderEliminarDeixo-te apenas um beijo
ainda bem que não é auto-biografico, é deprimente, é por isso que essas cartas não são tidas em conta
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