sábado, abril 07, 2007

33 - Até sempre, Maria

Faz, hoje, dez anos que a Maria morreu. É impossível esquecer. O que mais a marcava era o seu sorriso, tão puro, doce, tão alegre. A Maria tinha uma energia inesgotável, tinha apenas dois anos a mais que eu e era a minha melhor amiga.
Quando dormíamos na casa duma da outra, passávamos as noites a fazer planos. A nossa vida estava mais que organizada. Seríamos grandes pediatras, casaríamos com dois irmãos ingleses e moraríamos, todos juntos, numa fabulosa quinta. Teríamos quatro filhos e seríamos muito felizes. Nessas noites prometíamos ser as melhores amigas do mundo. E essa, essa foi a única promessa cumprida.
Eu sempre a invejei. Ela era bonita, das melhores alunas da escola e tinha todos os rapazes atrás dela. Os pais da Maria tinham ido para a Suiça pouco antes dela atingir a maioridade. Até nisso ela tinha sorte. A Maria era considerada perfeita. E, embora fosse a minha melhor amiga, detestava quando os meus pais me comparavam com ela.
Depressa a Maria se tornou maior de idade e como prenda tivera uma casa em Leiria.
Dois dias depois a tia Betty tinha falecido. Os meus pais foram a Itália, ao funeral, e depois acabaram por passar lá uns tempos, assim foi porque a Maria convidou-me para ir morar com ela. Eu adorei. Pela primeira vez achara os meus pais os melhores do mundo. Mas graças à Maria, claro.

Passou-se um ano. Eu estava completamente dependente da Maria e, no fundo, ela de mim. O sorriso da Maria era contagiante. Em tantos anos de convivência com a Maria nunca a tinha visto chorar, mas, nestes últimos meses, ela andava mal, algo a preocupava, e eu sabia. Mas, nunca falámos muito sobre isso. As poucas vezes que tocávamos no assunto ela desviava sempre o olhar e começara a falar noutra coisa e eu não insistia, nunca percebi o porquê, mas eu também andava muito cansada e triste porque o Guilherme não me ligava nenhuma.

Lembro-me tão bem. Foi numa quinta-feira de manhã. A Maria acordou primeiro que eu e disse-me: "preciso falar contigo. Por favor, ouve-me..." disse isso com um tom melancólico, deprimido e completamente desesperado. E eu dormia, ou fingia que dormia para não ter que acordar às 8h da manhã, num domingo de chuva.
Ela veio ter comigo e deu-me um beijo na testa. Olhou-me e deixou cair uma lágrima que me tocou no rosto.
Saiu, deixando a porta entreaberta.
Acordei eram 11h13 minutos. Senti a ausência da Maria. Espreguicei-me. Permaneci deitada ainda uns bons quinze minutos. Chamei pela Maria, mas nada. Levantei-me.
Percorri a casa, a pequena e airosa casa e a Maria não estava. Voltei ao quarto: uma carta. De repente ocorreu-me mil e uma imagens, das mais desagradáveis que pudessem haver. Tive medo, tive muito medo de a abrir. Lentamente desdobrei a carta, que dizia assim:
« Um dia, quando acordamos e nos apercebemos que há muito que não sonhamos, então aí, já não faz mais sentido viver.
Querida Marta,
Nunca fui feliz como sempre quis demonstrar que o era; sempre sorri para não ter que chorar. Mas hoje, ao querer falar contigo e tu continuares nesse sono profundo, senti-me tão só que nem imaginas. Chorei muito, muito mesmo, mas tu dormias, não ouviste.
Bolas, estou farta de sofrer escondida, sozinha, de sofrer neste cubículo só meu, de sofrer e de ninguém entender. FARTA!
Chama-me doida, doente, o que quiseres mas eu estou mesmo farta disto tudo. Com ou sem motivos, assim termino este meu sofrimento.
Um beijo e um até sempre,
Desta tua sempre – fracassada – amiga.
Desculpa-me...
»

A carta estava cheia de erros e a letra estava quase ilegível.
A Maria tinha-se suicidado. Naquele momento parecera que eu morrera também.
Incrivelmente não chorei. Apenas, uma incontrolável dor ia-me destruindo por dentro. E a culpa era minha.
Os pais da Maria , que sempre demonstraram pouco afecto e dedicação por ela – que eu na altura sempre julgara isso como sendo das melhores coisas que pudessem acontecer – puseram-me um "processo em cima": dizendo que eu era a culpada do sucedido. Claro que o tribunal não me atribuiu qualquer tipo de pena. Mas, se eu perante a lei nada de mal tinha feito perante os meus sentimentos eu era a pior das criminosas.
Eu tinha 17 anos, e por só pensar em dormir tinha perdido para sempre a Maria.

Hoje, passados dez anos – a Maria teria 29 anos – tenho uma filha linda, uma filha que se chama, também, Maria. A minha filha é tão ou mais bonita que a minha eterna amiga e têm as duas o mesmo sorriso. Podem ser muito parecidas mas vão ter destinos muito diferentes.

Para ti, minha amiga Maria,
gosto e vou gostar sempre muito de ti
e hoje sou eu que digo: desculpa-me...

Escrito a 15 de Fevereiro, Terça-feira, de 2005