Hoje o Miguel veio a nossa casa. A Ana chegou mais tarde, como sempre. Ela está igualzinha, até parece que o tempo não passou por ela: continua vaidosa, bem-disposta e sempre com um sentido de humor que, por vezes, a tornavam indelicada. Igualzinha aos tempos de adolescente, sempre a chegar atrasada fosse onde fosse. Já ninguém lhe dizia nada, porque já sabiam que ela era assim e tinha a necessidade de dar nas vistas e, ao chegar atrasada, e sempre tão espampanante dava nas vistas, de certeza. O Miguel não, era discreto e sempre pontual; cuidava muito do visual e nisso era igual à Ana, mesmo que ele fizesse questão em dizer que não; era intelectual, sabia sempre tudo, era o génio do liceu. E eu... Ah, eu acho que tinha um pouco dos dois. Talvez fosse a mais ponderada, sem grandes extremos. Se o Miguel nunca queria dar nas vistas acaba sempre por o fazer por ser pacato e com um ar muito anti-social. Eu era aquela que discretamente, sem ser assunto de conversa, estava sempre presente nas festas, era uma aluna mediana, social e com uma grande queda para o desporto. Ah, faltam os gémeos. O Jorge e o Gustavo. Bem, o Jorge era o mais estranho de todos nós e hoje percebemos porquê: é gay. Nunca desconfiámos porque o Jorge parecia ter dupla personalidade e isso confundia –nos e era tão bonito, mas tão bonito que ser gay ou ir para padre jamais nos passara pela cabeça. Mas hoje é um grande arquitecto, muito bem sucedido internacionalmente. O Gustavo... O rapaz por quem me apaixonei e o homem com quem casei. Os cinco e inseparáveis amigos, tão diferentes e, por isso, sempre tão unidos. Acho que nos completávamos.
Tanto a Ana como o Miguel continuam sozinhos. São complicados, eles. Escolhem demais e acho que esse é o problema. O Gustavo foi ter com o irmão, Jorge, a Nova Iorque e eu decidi convidar o Miguel e a Ana que já não os vejo há cerca de seis anos. Credo, como o tempo passa! Sempre pensei que um dia, se tivesse sem emprego, iria para Cupido. Era boa nisso! Mas a Ana e o Miguel foram o casal mais difícil de unir. Mas eu achava que ao fim de tantos anos, depois do coração tanto bater de tantas saudades eles iriam perceber o quão gostam um do outro e, finalmente, entregarem-se nos braços um do outro.
Foi uma noite inesquecível. Lá fora a chuva escorria sobre os grandes vidros da sala e nós, cá dentro, falávamos e falávamos e riamos e riamos. Relembrámos tempos antigos, episódios que eu, mesmo tão nostálgica, já tinha esquecido. E, de repente, a química entre o Miguel – que agora tinha cá um charme, em que os óculos e o ar de menino intelectual deram lugar a um homem seguro e elegantíssimo – ah se eu não fosse casada! – e a Ana – em que as purpurinas deram lugar a uma maquilhagem suave e discreta, que realçavam a sua verdadeira beleza – fizera-se notar. Eu, com aquela veia dramática que, infelizmente ou não, nunca a aproveitei, inventei uma situação e representei-a e, assim, lá consegui sair da minha própria casa deixando-os completamente a sós. Quando cheguei já cá não estavam. Deixaram um bilhete:
Mariana,
obrigada pelo jantar, estava tudo óptimo.
Esperamos que a tua tia já esteja melhor.
Agora estamos com pressa, mas daqui a pouco tempo irás receber notícias nossas.
Um beijo,
Ana e Miguel.
Duas semanas depois e recebi um postal de Las Vegas. Um postal da Ana e do Miguel que, após terem sabido que não havia tia nenhuma e, muito menos, que estava doente, disseram:
Querida Cupido Mar,
Como nos pudeste fazer isto, hein?!
Se estivéssemos aí bem sabes o que te aconteceria.
Adoramos-te e tu sabes disso, mesmo que estejamos tanto tempo sem nos vermos, mas o grande e o verdadeiro amor nunca morre e nós somos a prova disso.
Eu e o Miguel estamos muito felizes e é a ti que devemos tamanha felicidade.
Tu não mudas mesmo!
Um beijo a quem me mudou a vida. Agora já não acordo sozinha e tu tens bem a noção da gravidade da situação?! Eu, Ana, a miss beleza, a ser admirada quando acorda estando completamente natural. Que bonito. Com um simples gesto conseguiste-me mudar.
Não te esqueço.
Até...!
Gosto destes jantares, em que tudo muda...