segunda-feira, julho 31, 2006

11 - Anorexia

A Teresa tinha 15 anos quando entrou em coma. Era tão nova e tão bonita, mas julgava-se feia, descomposta, desengonçada e extremamente gorda. Se a situação não tivesse sido tão grave e problemática seria irónico para aqueles que conhecem a Teresa. Como é que uma rapariga de quinze anos, com um sorriso sedutor, alta e tão elegante poderá achar que não pertence aos padrões actuais da moda?! É tão ridículo como alguém pode quase perder a vida por uma estupidez dessas. E, chega-se a uma determinada altura, que o problema deixa de ser só dela para ser de todos aqueles que a amam.
Os pais, sempre falaram tanto com ela... E quando nas novelas ou nos jornais ou nas televisões abordavam o assunto da anorexia, os pais da Teresa diziam sempre que se, um dia, por acaso, isso lhes acontecesse, eles saberiam logo notar e nunca deixariam as coisas chegarem ao ponto de ter que haver internamento devido a perturbações graves e a problemas relacionados com a saúde. Mas, as coisas acontecem sempre tão rápido, e a Teresa era uma rapariga ajuizada e, na verdade, os pais nunca se sentiram ameaçados em relação a isso, porque conheciam a filha que tinham e não a julgavam capaz de passar por tal.
E foi tão fácil perder peso. Passou a ficar mais tempo na escola e, assim, foi tudo muita mais fácil, porque se era lá que passava a maior parte do tempo, era lá que, sozinha, teria que se alimentar e, incrivelmente, teve dias que não comia nada. E, em casa, sempre que, por algum motivo, a “obrigavam” a comer ela lá o fazia, mas em seguida tudo o que tinha comido era, de imediato, “expulso”. Na escola, acreditavam que era em casa que ela tinha as boas refeições e, em casa, julgavam que era na escola... Daí, a situação da Teresa, ter sido facilitada. As roupas eram largas para não se notar a perda de peso, o rosto ia ficando cada vez mais pálido, as tonturas eram constantes e a má disposição começava a ser diária. Dias, semanas, e até meses sem ser descoberto o problema da Teresa, embora as suspeitas já começassem. Mas foi a professora de matemática da Teresa que teve em atenção a sua situação e se apercebeu do seu problema. Alertou os pais e os amigos e foi difícil fazer com que a Teresa acreditasse que estava doente, pois ela insistia em achar-se gorda, mesmo quando chegou a pesar 36 kilos. Foram tempos terríveis que deixaram marcas. Fazia impressão olhar para o rosto dela, para as suas mãos em que a pela quase se desfazia; o cabelo, tão fraco, feio e a aquela cara, com pele enrugada e só ossos, faziam crer que estávamos a olhar para um cadáver. Era terrível e foi difícil para todos superar aquela situação. Hoje a Teresa sabe que nunca deveria ter feito o que fez, sabe que a beleza que ela realmente tinha perdera-a simultaneamente com todo o peso que perdeu e, aí, ficou realmente feia, deselegante e tornou-se numa pessoa desagradável porque psicologicamente continua afectada. Mas, apesar de tudo, a situação dela poderia ter sido bem pior se ela não tivesse o apoio que teve, o amor incondicional que nunca lhe faltou, mesmo nos momentos em que ela era arrogante e desagradável para as pessoas que a tentavam ajudar. Se assim não fosse, certamente ela nunca teria saído do coma e o destino mais provável seria a morte. Mas isso não aconteceu e, agora, anos depois, continua a tentar recuperar. Está gorda, mas dos imensos medicamentos que tem que tomar e, assim, desgraçou a sua vida, pelo menos a vida de menina feliz que dantes tinha e que jamais poderá recuperar. Agora, apenas tenta ser feliz com aquilo que tem e, sem dúvida, ama todos aqueles que nunca a deixaram, porque a amizade, porque o verdadeiro amor faz com que ultrapassemos as piores situações, mesmo aquelas que nos parecem sem solução.

sexta-feira, julho 28, 2006

10 – A culpa é do Jazz

Sempre que nos encontramos o Jazz acompanha-nos. Foi ao som do Jazz que nos conhecemos e, foi ao som do mesmo, que eu me apaixonei por ti. Todo aquele instrumental, que nos fazia tremer e que, sem nos apercebermos, fazia com que as nossas mãos se tocassem e assim permanecessem até um de nós reparar. Vibramos só de olhar para os músicos que, com garra, tocam brilhantemente. E, por telepatia ou não, sentimo-nos capazes de amar o mundo e, naquele momento, sentimos que conhecemos todos aqueles que estão à nossa volta, a admirar toda aquela música que nos enche, por completo, as nossas almas. E, agora, é ao som do Jazz que eu escrevo; é ao som do Jazz que eu me lembro de ti e que penso como a nossa história poderia ter sido diferente ou, quiçá, ainda poderá vir a ser diferente. Será? Aprendi que eterno só mesmo as incertezas do ser humano, tudo o resto é efémero, mesmo o amor que se diz que é para todo o sempre. Até estas palavras que eu escrevo, agora, com tanto sentimento, amanhã ou depois já nada me dizem e, talvez, até chegue a pensar quem poderá ter escrito tal coisa, porque eu... Eu não fui...
Neste momento, a única certeza que tenho é que amar-te-ei até ao dia que deixar de amar o Jazz.

quarta-feira, julho 26, 2006

9 - Tu e Eu

Todas as noites me deixo escorregar e quando já estiver estendida no chão deixo-me permanecer assim. As lágrimas são infinitas sempre que penso em ti. Ainda sinto o cheiro da última vez em que os nossos corpos se tocaram; ainda sinto o sabor dos teus lábios a tocarem nos meus; ainda... Ainda te sinto.
É obsessivo este estado de dependência, este viver só para ti. O telefone toca e, por pensar que és tu, deixo tudo, deixo a minha vida só para ir ao teu encontro. Porque sofro se não estás, porque morro se contigo não estou; porque eu sou tu e tu és eu.

terça-feira, julho 25, 2006

8 - Quando existe a atracção mas falta o amor

Sempre que me tocas fazes-me crer que sou única. Arrepio-me de tanto prazer e tu, depois de tantas noites de amor, dizes-me sempre: “Tu precisas de alguém, mas não sou eu a pessoa mais indicada”. E eu continuo aqui, sempre à espera da próxima noite em que nos tocaremos como se fosse a primeira vez. Preciso de ti para me sentir viva e preciso de ti porque te quero. Não percebo que, mesmo sem usares as palavras para dizeres que me amas, tenhas atitudes que me fazem pensar que tu estarás sempre comigo e depois, abraças-me, beijas-me e dizes-me que não és a pessoa mais indicada! Não consigo compreender o que essa frase quererá dizer. E mesmo sem perceber, não serei eu a pessoa mais indicada para saber se tu és ou não a pessoa que me completa, a pessoa que eu necessito?! Pois eu sei que és tu quem eu sempre procurei e desculpa se não queres que eu percorra atrás de ti, mas és-me importante demais para eu te deixar fugir assim. Cansei-me de não te ter por inteiro, de te sentir sempre incompleto; cansei-me de te olhar e ver que te falta algo e que tu, mesmo assim, não queres que eu te preencha esse vazio que tanto nos incomoda. Que os nossos corpos se atraem desde o primeiro dia que se viram, não há dúvidas, mas só me falta uma coisa para me sentir realizada: falta-me o teu amor e, eu sei, que um dia o terei. Porque quando queremos muito uma coisa e o sentimento é verdadeiro, então tudo correrá como o desejado. E eu desejo-te e, por isso, ter-te-ei.

terça-feira, julho 18, 2006

7 - Histórias verdadeiras

Há alturas em que ela sente a necessidade de ouvir música num tom que seja mais elevado que a sua voz, de tal maneira que, quando falar, não se oiça. Assim, conta segredos. Desabafa e conta histórias para quem quiser ouvir. Não são histórias de príncipes e princesas, cavalos e dragões, são histórias verdadeiras. Histórias de amores e desamores, de momentos de glória e outros de tédio e melancolia. Histórias verdadeiras são as histórias da sua vida.
A música é o seu maior trunfo para conseguir vencer na vida. A música conhece-a como ninguém, sabe de todos os seus segredos e, assim, sempre que ela canta não há uma única palavra que seja dita que não tenha um significado, uma pequena história por contar. Todas as palavras são ricas, não só em significados, mas também em sentimentos; expressam desejos, ordens e valores; expressam a sensação do momento, o estado de espírito em que se está envolvido.
Ela ama as palavras. Respeita-as como pequenos grandes tesouros. E, sempre que a tristeza apertar, lá vai ela aumentar o som da aparelhagem e, assim, soltar tudo o que há em si. Remover a dor e, por conseguinte, substitui-la por uma sensação de bem-estar. Às vezes, ela quer esquecer tudo aquilo que a faz ficar presa ao passado. Às vezes, ela só se quer sentir livre: livre de amores, livre do medo... Livre de si e das suas histórias verdadeiras, mas sempre presa à música.

segunda-feira, julho 17, 2006

6 – Haja amor e tudo é possível

Ouve, Maria. Escuta. Não ouves? Não há nada para ouvir? Só há silêncio? Pois é isso que eu quero que oiças. Ouvir o silêncio é saber ouvir-te a ti mesma. O silêncio pode ser tranquilizador, mas também pode ser traiçoeiro e, em vez de calma e harmonia, pode fazer com que fiquemos sobressaltados, amedrontados e, até mesmo, aterrorizados. Calma, não tenhas medo, Maria. Tudo depende da maneira como o ouves. Não consegues, não é? Olha, aprende amar-te e, depois disso, vais ver que tudo é possível.

domingo, julho 16, 2006

5 - Escassa Vida

Olho para mim e vejo que já nada resta. O tempo passa e tudo acaba por se desfazer. Não interessa se recuo ou se avanço, porque seja o que for que eu faça já é tarde. Toco-me e já não me sinto. As estradas que percorri já não existem e as escolhas que fiz, agora, já não fazem mais sentido. Caminhei sempre cuidadosamente para que tudo o que, até à data, estava bem construído não se perdesse de repente. Caminhei cuidadosamente para que não houvessem lacunas e para que eu, no fim da minha vida, pudesse olhar para trás e sentir que tive Vida! Mas nada restou, apenas o vazio que se, talvez, tivesse esquecido o ‘politicamente correcto’; tivesse amado quem eu quis e quem me quis amar; tivesse percorrido caminhos ocultos na tentativa de alcançar os meus sonhos, talvez estivesse agora no meu rosto cheio de rugas um sorriso de sabedoria, de quem sabe o que é viver. E, se para saber o que é viver, eu tivesse que cair muitas vezes nos degraus da vida, então que caísse, pois logo me levantaria e, assim, ia aprendendo a viver para depois recordar, sorrir e para sempre adormecer.

quarta-feira, julho 12, 2006

4 - Carta para o João

Nunca me compreendeste mas, mesmo assim, sempre me amaste. Agarraste na minha vida de todas as vezes que sentiste que eu a estava a perder. Hoje já deixei de tentar perceber porque é que insistes em estar a meu lado, eternamente a meu lado. Conheces-me por completo, sem segredos. Acho que se, por algum motivo, um dia destes me abandonasses eu já não mais saberia viver. Fazes parte de mim e eu preciso de ti para continuar a caminhar sem medos e sem a vontade de voltar para aquele mundo que me tirou a capacidade de sonhar, de amar e até mesmo de viver. E tu, sempre tu, que agarras as minhas duas mãos, olhas-me para os olhos e proteges-me. Acho que nos conhecemos desde sempre, não é assim, João?! Conheceste o meu sorriso e, depois, assististe a toda a minha destruição. Mesmo cheio de vontade, nunca me fizeste perguntas, apenas me abraçavas bem forte sempre que eu precisava. Necessitaria de uma nova vida para te conseguir agradecer tudo aquilo que sempre fizeste por mim: aguentaste todo o meu mau humor, a minha agressividade para com tudo e todos e, sem eu nunca te ter pedido perdão, tu perdoaste-me. Hoje, ao ver-te a morrer, tenho a necessidade de te contar tudo. Contar-te tudo aquilo que nunca soubeste, nem tu, nem ninguém. Então ouve-me, meu doce e eterno João:

Foi quando fiz 20 anos que conheci o Bernardo. Sim, o Bernardo!, aquele menino rico e mimado, como tu dizias. Mas foi por ele que me apaixonei e foi com ele que, aos poucos, fui conhecendo todo o tipo de drogas.
Nós amávamo-nos muito! Ao fim de uns 3 meses de namoro fui notando alguns comportamentos menos normais por parte do Bernardo. Até que um dia, em que eu fui ter com ele à sua casa, ele me tratou de uma forma bastante agressiva e, em seguida, saiu a correr. Por momentos, cheguei mesmo a ficar assustada e, por isso mesmo, decidi segui-lo. Foi o maior choque da minha vida quando soube que o Bernardo era um toxicodependente. Respirei fundo e fui ter com ele. Olhámo-nos intensamente e depois abracei-o com toda a minha força. E, de mãos dadas, seguimos até casa. Ele contou-me há quanto tempo e como tudo tinha começado. Eu prometi que nunca o ia deixar de amar e, consecutivamente, nunca o iria abandonar. Afinal, mesmo sem saber, apaixonei-me por ele e ele já tinha entrado neste mundo que, até à data, sempre me foi desconhecido. A partir daquele dia eu e o Bernardo passamo-nos amar ainda mais. E, num dia, quis experimentar tudo aquilo; descobrir todas aquelas sensações e tentar perceber porque é que o Bernardo tinha optado por aquele caminho. Mas ele nunca quis. Nunca! Mas estávamos naquilo juntos e eu, parvamente, acreditava que só o podia ajudar se soubesse verdadeiramente por aquilo que ele estava a passar. E, sem que ele soubesse, inicie-me, primeiro com as drogas mais leves, depois com as mais ‘pesadas’. Aos poucos, começava a gostar de toda aquela sensação, daquele poder que se exercia sobre mim. Mas todas essas sensações acabaram no dia em que comecei a sentir a necessidade de as consumir, não pelo prazer, mas pela simples necessidade de sobrevivência. E foi assim que eu e o Bernardo nos envolvemos mais e mais nessa vida. E, ironicamente ou não, eu envolvi-me mais que ele.
Foi tudo tão rápido que eu, quando dei por mim, estava completamente dentro daquele abismo. Visivelmente mais magra e a perder tudo o que tinha de mais valioso. Mas tudo piorou após a morte do Bernardo. Foi como se tivesse perdido tudo aquilo que me restava; foi como se tivesse perdido a minha vida, se é que já não a tinha perdido antes. O Bernardo morreu por causa da droga e a mistura de amor que eu tinha por ele e a necessidade de consumir drogas dava comigo em doida. E, já completamente louca, quis morrer como Bernardo. Se por ele – mesmo sem ele querer - , eu tinha entrado naquela vida era, por ele, que eu assim iria morrer. Vê-lo morrer tão lentamente é a lembrança que eu tenho de toda a minha vida. Tantos e tantos anos de amor e tantos e tantos anos perdidos, anos que o mataram e que, cruelmente, aqui me deixaram. Eu sei, João, o que tu deves estar a pensar, mas também sei que, mais uma vez, me vais estender a mão, beijar-me a face e dizeres que me amas. Às vezes pergunto-me porque é que eu não me apaixonei por ti, talvez fosse mais feliz por não ter tido a vida que tive, mas seria certamente muito infeliz por não ter o amor do meu Bernardo. Eu acredito que tudo tem uma razão de ser e, se o destino existe, este foi o meu. A ti, meu querido e eterno amigo João, não sei se te agradeço por me teres conseguido arrancar do abismo em que eu estava metida, ou se te devo culpar por não ter morrido e estar, como prometi, para sempre com o Bernardo. Hoje és tu que eu vejo partir, talvez porque te cansaste de me ver sofrer. E agora, João, o que vai ser de mim sem ti?
Perco os meus dois amores e já nada resta.
Não morri com o meu Bernardo, mas morro contigo, meu João.

Um beijo a quem sempre me soube amar sem nunca me julgar.

Inês

segunda-feira, julho 10, 2006

3 - Sereia divina

Apaixonei-me por ela no dia em que a vi andar sobre o mar. Os meus olhos perderam-se facilmente. A sua pele morena e aquele cabelo liso, comprido e tão claro deixaram-me, por segundos, sem respiração. Ainda pensei que estivesse a sonhar, não só pela beleza divina daquele ser humano, mas de todo aquele ambiente que me rodeava. Era Inverno e a areia daquela praia, só nossa, era fria e macia; o vento, devagarinho, batia nos rostos daqueles que por lá se atrevessem a passar e as ondas do mar eram ainda mais misteriosas. Mas aquele meu ar tão distante fez com que uma onda ‘arrebenta-se’ sobre o meu corpo e, assim, logo me apercebi que aquele ‘balde de água fria’ que eu pude sentir sobre a minha pele não se podia tratar de um sonho. Sorri e decidi segui-la. Passo por passo. Ouvindo o som do mar, assim como ela. Entretanto, o meu jeito sempre trapalhão, fez com que tropeçasse no meu próprio pé e, antes que tivesse tempo para me levantar, já estava ela de mão estendida pronta ajudar-me.

( Disso eu nunca me vou esquecer. Não era suposto termo-nos conhecido assim. Eu é que, como um gentil e nobre cavalheiro, a devia salvar dos inúmeros e perigosos dragões que - a bem ver, naquele caso, era mais provável serem tubarões – a pudessem magoar. Mas assim não foi e, contra isso, não há nada a fazer. )

Olhámo-nos intensamente e eu pude sentir toda aquela magia nas minhas mãos, no meu peito, no meu olhar, nas mãos dela, no peito dela, no olhar dela e em todo o nosso redor. O mundo parou aí. Nada mais existia a não serem duas almas que se tentavam completar.
Foi aí que pude ouvir a voz dela a pronunciar o seu nome. Aquela sereia que nadava fora do mar chama-se Leonor. Amei-a intensamente como se fosse o meu primeiro amor, pois para mim cada amor é um amor e a cada um nos devemos entregar com a mesma força e com a mesma capacidade de acreditar que aquele sentimento será para todo o sempre. E, por tudo isso, eu amo-te! Sim, amo-te, porque um dia já te amei e, com isso, fomos felizes.

quinta-feira, julho 06, 2006

2 – O rapaz que queria ser Poeta...

Nunca quis ser jogador de futebol, actor ou até médico como a maioria dos jovens. Quis ser poeta! Nasci e cresci no seio de uma família pobre o que me agradava pois sempre achei que os grandes poetas tinham sempre grandes histórias de vida e eu acreditava que sendo um menino vestido com alguns trapos, por vezes, rotos, teria uma sensibilidade maior do que qualquer outro ser. E tinha. Assim que aprendi a ler comecei a devorar todos os romances que, na altura, existiam. Apaixonei-me pela história de amor de Romeu e Julieta, de William Shakespeare e, com eles, chorei. Lia à noite, por debaixo dos colchões, usando uma pequena vela que se colocava na mesa ao lado. Aos meus pais, que queriam apenas que eu estudasse para um dia ser um senhor doutor, dizia que o escuro da noite me assustava e, por isso, a luz da vela era indispensável para que pudesse adormecer sossegadamente. Meses depois, de muita leitura nocturna, quase sem luz, fui obrigado a usar óculos e gostei. Os óculos faziam de mim um rapaz intelectual, no fundo, como todos os grandes poetas. E o centro de Lisboa, que me via acordar e adormecer todos os dias e todas as noites dava-me a inspiração que eu necessitava para escrever. E eu escrevia, escrevia e escrevia. As palavras saíam-me facilmente e, com a mesma facilidade, fazia versos e construía poemas. Eu gostava do que escrevia e sempre me achei capaz de criar grandes obras. Livros de quinhentas páginas, que toda a gente lê e que eu, ao passar na rua, seria reconhecido por todos. Imaginava um futuro brilhante e, até mesmo quando eu morresse, todos iriam falar naquele menino tão simples e pobre que nascera em Lisboa e cujo talento lhe fizera conquistar meio mundo. Eu passava o dia a sonhar... E era feliz por pensar que um dia o ia ser verdadeiramente.
Adorava andar pela rua, de pés descalços, respirando o ar daquela cidade que, na altura, era tão mais saudável. E, enquanto os meninos lá fora iam jogando à bola, eu preferia isolar-me num cantinho que era só meu, que eu descobri para poder escrever. O meu pai é que se fartava de reclamar pela minha fraca estrutura óssea e, nessas alturas, fazia um sorrisinho e um ar angelical e voltava para o meu refúgio. Naquela altura, as horas custavam a passar. A televisão, mesmo a preto e branco, era coisa rara e eu fazia parte dos milhares que sempre que via uma ficava boquiaberto e é claro que as poucas vezes que consegui olhar para uma era sempre na casa de um amigo de famílias mais favorecidas. Mas esses bens materiais nunca me fizeram falta. Eu só queria ser poeta. E fui... Um fraco e falhado poeta, mas fui. Milhares de sonhos foram destruídos no momento em que decidi levar uns quantos poemas a uma editora. Lembro-me como se fosse hoje, todos os editores por onde eu passava, que não eram muitos, assim que liam a primeira quadra olhavam para mim e desatavam-se a rir. E enquanto eu queria ser reconhecido pela qualidade da minha escrita, os editores em questão achavam que eu poderia funcionar bem a nível de mercado. E, nos primeiros meses, tudo funcionou como eles queriam. As vendas tinham aumentado imenso e eu preenchia as capas de todas as revistas e jornais da região. Depois... depois, nem a proeza de ter sido classificado como o pior escritor do século me fez continuar no tope. E, assim, os sonhos de criança foram talentosamente destruídos e, o que me valeu, foi que ainda fui a tempo de recomeçar a estudar... E hoje sou médico, sou infeliz, mas médico!

quarta-feira, julho 05, 2006

1 – Passado que me mata

Passaram quase 35 anos desde o dia em que apanhei aquele maldito comboio para Paris. Era um simples miúdo como todos os outros e, por isso, preferi conhecer o mundo ao invés de partilhar a minha vida com a Paula. Eu amava-a, mas só hoje é que tenho consciência disso. Na altura o amor aparecia-me sempre de forma abstracta, nunca o pude ver ou sentir. É claro que a Paula dizia-me sempre “Rui, tu amas-me, eu sei!”. Mas eu não sabia. Ela era tão bonita. Antes de partir, eu e a Paula tivemos uma noite magnífica, de entregas. No fundo, e só hoje sei disso, foi uma noite de puro amor. Aqueles cabelos negros a passarem pela minha cara, aqueles olhos grandes e negros, também, a olharem-me fixamente faziam-me crer que eu ia ter aquela mulher para todo o sempre... Até quase desisti da viagem. Mas assim que ela adormeceu, beijei-lhe os lábios e parti sem nada lhe dizer. Já na estação, enquanto ia batendo alternadamente com os dedos na minha perna, esperava ansiosamente pelo comboio que, para me contrariar, estava atrasado. Eu não acreditava no destino. Se fosse hoje, percebia logo que o facto de o comboio estar uma hora e trinta e cinco minutos atrasado era um presságio que me faria ficar naquela terra. Mas não fiquei. E o pior foi quando eu, já dentro do comboio, vi a Paula que, enquanto chorava, ia gritando que me amava e que não me queria perder assim. E, de repente, imensos olhares que me eram estranhos invadiram-na e eu, discretamente, virei o rosto como se não fosse nada comigo. Lentamente, o comboio começou andar, eu acabei por adormecer... Anos depois, quando acordei, era um homem viúvo, sem filhos, sem nada, apenas com as recordações das imensas viagens que fiz, dos conhecimentos que travei mas que hoje de nada me servem. Agora, todos os dias, vou morrendo um pouco de cada vez que penso nos grandes olhos negros a derramarem lágrimas por mim. Mas só morrerei definitivamente no dia em que as lágrimas da Paula tiverem secado por completo.

As cores da vida

Num dia uma lágrima, no outro um sorriso; às vezes a tempestade, outras vezes um sol de radiar (...). Assim é a vida que nos faz continuar a caminhar, para lhe retirar a amargura e devolver-lhe a doçura.

Movendo os meus dedos sobre o teclado construirei palavras até se formarem frases e, aos poucos, a história se vai formando até, um dia, eu colocar um ponto final.