quarta-feira, julho 12, 2006

4 - Carta para o João

Nunca me compreendeste mas, mesmo assim, sempre me amaste. Agarraste na minha vida de todas as vezes que sentiste que eu a estava a perder. Hoje já deixei de tentar perceber porque é que insistes em estar a meu lado, eternamente a meu lado. Conheces-me por completo, sem segredos. Acho que se, por algum motivo, um dia destes me abandonasses eu já não mais saberia viver. Fazes parte de mim e eu preciso de ti para continuar a caminhar sem medos e sem a vontade de voltar para aquele mundo que me tirou a capacidade de sonhar, de amar e até mesmo de viver. E tu, sempre tu, que agarras as minhas duas mãos, olhas-me para os olhos e proteges-me. Acho que nos conhecemos desde sempre, não é assim, João?! Conheceste o meu sorriso e, depois, assististe a toda a minha destruição. Mesmo cheio de vontade, nunca me fizeste perguntas, apenas me abraçavas bem forte sempre que eu precisava. Necessitaria de uma nova vida para te conseguir agradecer tudo aquilo que sempre fizeste por mim: aguentaste todo o meu mau humor, a minha agressividade para com tudo e todos e, sem eu nunca te ter pedido perdão, tu perdoaste-me. Hoje, ao ver-te a morrer, tenho a necessidade de te contar tudo. Contar-te tudo aquilo que nunca soubeste, nem tu, nem ninguém. Então ouve-me, meu doce e eterno João:

Foi quando fiz 20 anos que conheci o Bernardo. Sim, o Bernardo!, aquele menino rico e mimado, como tu dizias. Mas foi por ele que me apaixonei e foi com ele que, aos poucos, fui conhecendo todo o tipo de drogas.
Nós amávamo-nos muito! Ao fim de uns 3 meses de namoro fui notando alguns comportamentos menos normais por parte do Bernardo. Até que um dia, em que eu fui ter com ele à sua casa, ele me tratou de uma forma bastante agressiva e, em seguida, saiu a correr. Por momentos, cheguei mesmo a ficar assustada e, por isso mesmo, decidi segui-lo. Foi o maior choque da minha vida quando soube que o Bernardo era um toxicodependente. Respirei fundo e fui ter com ele. Olhámo-nos intensamente e depois abracei-o com toda a minha força. E, de mãos dadas, seguimos até casa. Ele contou-me há quanto tempo e como tudo tinha começado. Eu prometi que nunca o ia deixar de amar e, consecutivamente, nunca o iria abandonar. Afinal, mesmo sem saber, apaixonei-me por ele e ele já tinha entrado neste mundo que, até à data, sempre me foi desconhecido. A partir daquele dia eu e o Bernardo passamo-nos amar ainda mais. E, num dia, quis experimentar tudo aquilo; descobrir todas aquelas sensações e tentar perceber porque é que o Bernardo tinha optado por aquele caminho. Mas ele nunca quis. Nunca! Mas estávamos naquilo juntos e eu, parvamente, acreditava que só o podia ajudar se soubesse verdadeiramente por aquilo que ele estava a passar. E, sem que ele soubesse, inicie-me, primeiro com as drogas mais leves, depois com as mais ‘pesadas’. Aos poucos, começava a gostar de toda aquela sensação, daquele poder que se exercia sobre mim. Mas todas essas sensações acabaram no dia em que comecei a sentir a necessidade de as consumir, não pelo prazer, mas pela simples necessidade de sobrevivência. E foi assim que eu e o Bernardo nos envolvemos mais e mais nessa vida. E, ironicamente ou não, eu envolvi-me mais que ele.
Foi tudo tão rápido que eu, quando dei por mim, estava completamente dentro daquele abismo. Visivelmente mais magra e a perder tudo o que tinha de mais valioso. Mas tudo piorou após a morte do Bernardo. Foi como se tivesse perdido tudo aquilo que me restava; foi como se tivesse perdido a minha vida, se é que já não a tinha perdido antes. O Bernardo morreu por causa da droga e a mistura de amor que eu tinha por ele e a necessidade de consumir drogas dava comigo em doida. E, já completamente louca, quis morrer como Bernardo. Se por ele – mesmo sem ele querer - , eu tinha entrado naquela vida era, por ele, que eu assim iria morrer. Vê-lo morrer tão lentamente é a lembrança que eu tenho de toda a minha vida. Tantos e tantos anos de amor e tantos e tantos anos perdidos, anos que o mataram e que, cruelmente, aqui me deixaram. Eu sei, João, o que tu deves estar a pensar, mas também sei que, mais uma vez, me vais estender a mão, beijar-me a face e dizeres que me amas. Às vezes pergunto-me porque é que eu não me apaixonei por ti, talvez fosse mais feliz por não ter tido a vida que tive, mas seria certamente muito infeliz por não ter o amor do meu Bernardo. Eu acredito que tudo tem uma razão de ser e, se o destino existe, este foi o meu. A ti, meu querido e eterno amigo João, não sei se te agradeço por me teres conseguido arrancar do abismo em que eu estava metida, ou se te devo culpar por não ter morrido e estar, como prometi, para sempre com o Bernardo. Hoje és tu que eu vejo partir, talvez porque te cansaste de me ver sofrer. E agora, João, o que vai ser de mim sem ti?
Perco os meus dois amores e já nada resta.
Não morri com o meu Bernardo, mas morro contigo, meu João.

Um beijo a quem sempre me soube amar sem nunca me julgar.

Inês

32 comentários:

  1. Que nervos!
    Mais de uma hora para conseguir postar! Sempre o blogger e os seus problemas, irra!


    Boa noite a quem possa por aqui passar :-)*

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  2. Depois de ler esta história triste nem sei o que dizer... nem consegui evitar uma lagrimita no canto do olho.. a droga é um flagelo que não só destrói o individuo como tudo à sua volta.. o pior é que basta a gente olhar para o lado e assiste a cenas degradantes. Bjhs

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  3. É difícil dizer o que quer que seja... uma experiência tão cruel...só tu a compreenderás...

    Bjins*

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  4. Hoje tou especialmente sensivel...
    e talvez por isso, houve lembranças (próximas) que se instalaram na minha mente.

    Beijinhos

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  5. ...uma história arrepiante ...e bem triste....

    Bjs

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  6. Só uma palavrinha: notável :)

    Fica numa boa

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  7. Inês...

    As palavras que te poderia deixar aqui por mais que fossem não transmitiriam o que me vai na alma.
    Poderia dizer que te compreendo, apesar de não existirem nem vidas nem situações parecidas.
    Resta-me partilhar contigo este momento...
    Entrego-te um beijo num instante de silêncio.

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  8. escreves realmente muito bem madalena. os meus sinceros parabéns:)

    quanto à inês, sinto que esta carta foi uma espécie de catarse para a sua alma

    *

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  9. Olá Madalena,
    A tua história retrata bem um dos nossos mais graves problemas actuais, a Droga! Nada deste mundo é bom e quem é k não tem pelo menos 1 conheçido para dar o exemplo...
    Fika bem!

    Bjokas**

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  10. Algures, ao longo das nossas vidas, já todos fomos nem que por breves instantes, a Inês ou o João. Ou os dois.
    Notável post.
    Um beijo.

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  11. Madalena, agradeço as tuas palavras. Descobriste-me primeiro mas também é minha a alegria de te encontrar. Gostei, muito, das palavras. Já estava a pensar que este mar digital era só Poesia...
    Um grande Bj.

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  12. Uma história triste ,mas que nos prende até ao fim
    gostei
    beijos

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  13. São vidas...!

    Um beijo e obrigada a todos :-)*

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  14. uma história da minha vida em alguns parágrafos deste post...

    obrigada pelo texto

    e pela visita ;)

    beijinhos

    alice

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  15. Olá Madalena:
    Obrigada pela tua visita ao campo.
    Este teu texto é notável.
    Muito bem escrito e sobre um problema tão actual.
    Gostei muito da forma como o abordaste.
    Beijo

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  16. Começo sem palavras...ler esta história fez-me lembrar a minha grande amiga Vanessa, que faz um ano e quatro meses que morreu pelo mesmo motivo, rumou por este mundo(droga) por causa de um amor... e eu entrei sem entrar...nada consumi...mas vivi tão intensamente os dias com ela que era como se tivesse consumido...convido-te a ler o texto que escrevi sobre ela em que está postado no blog como "Vanessa"...saio sem palavras...

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  17. Uma carta fantastica...
    Julgo que não deve deixar muita gente indiferente...
    Obrigada pelas palavras deixadas no meu cantinho...
    *

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  18. É a primeira vez que visito este blog, e para primeira impressão, achei-o fantástico. Parabéns.
    Boa noite!

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  19. Juro que não sabia! :D
    Ah! Mas eu tenho Mãos de Tesoura!!!
    Beijos

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  20. ... as perdas são sempre difíceis! o fio condutor de uma vida, não é fácil de interromper ou alterar!

    sensibilidade. palavra de ordem na abordagem desta temática

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  21. Desde já,obrigada pela visita!
    Confesso que não conhecia o blog mas tenho estado a dar uma vista de olhos e estou a gostar muito de te ler. Esta carta está...nem sei bem como descrevê-la. Digamos que me "tocaram" fundo,estas tuas palavras...

    Ps: Vou voltar,certamente! :)

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  22. que carta... uf!, é preciso fôlego. bj

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  23. Um texto à flor da pele!!!
    O silêncio fala por mim.

    Beijinho
    ***

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  24. Há vidas assim: tão 'cheias'!

    Mas eu admiro muito todos aqueles que aprendem sempre alguma coisa com os erros ou as atitudes que tomam ao longo da vida...
    E muito haveria para se dizer, mas talvez o silêncio diga tudo!

    Beijo e obrigada a todos!*

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  25. Existem momentos, como este, quando nos deparamos com uma história de vida tão intensamente machucada, que só nos resta a compaixão para sentir.

    Obrigada por partilhar conosco esse relato que vem nos mostrar lições de vida: a destruição que a droga pode causar a um ser humano; a intensidade de um amor que quis se manifestar até na destruição; e a amizade de um ser humano por outro que se fez até o limite do insuportável.

    Um texto forte, denso, que nos traz reflexões profundas.

    Um beijo, amiga, no seu coração!

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  26. Sei que ao colocares aqui esta carta, logicamente seria para quem quisesse ler, mas peço-te desculpa por o ter feito, senti que entrei na tua vida, coloquei-me no lugar de alguem, entendi, reprovei, julguei, critiquei e apoiei alguem que não conheco.
    Li a tua carta de uma vez so, acho que nao parei nem para respirar e apenas te posso "dizer": perdeste os teus dois amores, nao te percas a ti...
    fica bem

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  27. este post impressionou-me muito, fiquei sem saber o que hei-de dizer.por isso, subscrevo aquilo que já foi dito antes pelos outros bloggers

    Um grande beijinho

    Ritinha

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  28. kikas,
    não entraste na minha vida, porque esta não foi nem é a minha vida ;)




    Beijo a todos :-)

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  29. Apertou o meu coração e vez me pensar que de facto um grande amor nem sempre representa uma grande alegria... e que uma grande amizade por vezes vale pela força do amor!

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  30. Foi tão bonito e romântico que até fiquei a chorar...
    Bem mas também, acho que o dito cujo chamado João foi muito burro.
    Beijinhos e já agora quem é que morreu afinal?
    Bjs

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